As celebridades digitais criadas em computador | VEJA – VEJA
“Estou superagradecida por minha primeira experiência com o amor ter sido com alguém que se importava comigo de todo
“Estou superagradecida por minha primeira experiência com o amor ter sido com alguém que se importava comigo de todo o coração. E, mesmo com o colapso e a separação embaraçosa que se seguiu, parece que avançamos.” A declaração — emotiva, mas que também exprime maturidade — faz parte de um post publicado no início deste mês pela influenciadora digital californiana Lil Miquela, de 22 anos, em seu perfil no Instagram. A mensagem, dirigida a seus 2 milhões de seguidores, tinha por objetivo anunciar o fim do namoro da moça com um certo Nick. Não é novidade, claro, que celebridades venham a público falar da vida pessoal. No caso de Lil Miquela, no entanto, há uma particularidade. Ela não é de carne e osso — só existe no maravilhoso mundo virtual. Trata-se de um robô criado em computador graças aos extraordinários avanços da inteligência artificial (IA).
Como assim? E as selfies que inundam suas redes sociais? Simples: não são verdadeiras. E as fotos posadas ao lado de famosos? Resposta: jamais ocorreram em qualquer ponto do território terrestre. E a história de que sua família é metade brasileira e metade espanhola? Pura ficção. Lil Miquela é a mais fulgurante das celebridades virtuais, porém com fama e “influência” ao redor do planeta bastante palpáveis.
Ela estreou no Instagram em abril de 2016 e, durante meses, gerou uma série de especulações, principalmente em razão do fato de que seu rosto nunca aparecia focado de forma nítida pelas lentes das câmeras fotográficas. As teorias conspiratórias não demoraram a ser desenvolvidas por muitos que perceberam que aquela não era uma pessoa de verdade — sim, nem sempre isso fica evidente para os fãs, e é preciso reconhecer que seus idealizadores capricharam na hora de provocar a “confusão”. Houve quem apostasse em uma “jogada de marketing” do The Sims, série de jogos eletrônicos que simulam a vida real. Outros diziam acreditar que Lil Miquela estava a serviço de algum misterioso experimento social. Não demorou, entretanto, a ficar evidente a que ela vinha: Lil Miquela surgiu para cumprir o papel de garota-propaganda. Nas fotos que publica no Instagram, ela sempre aparece usando roupas de grife como Prada, acessórios da Chanel e sapatos Dior. Nada mais it girl. Lil Miquela já gravou hits como Not Mine, que viralizou no Spotify, dá dicas de restaurantes e viagens, e usa a web para apoiar causas sociais, como o movimento Black Lives Matter (campanha de denúncia da violência policial contra afrodescendentes nos Estados Unidos) e a organização Black Girls Code, que oferece aulas de programação e robótica a jovens negras. Tudo isso borra as fronteiras entre o mundo real e o virtual. Até hoje nunca ficou claro se Lil Miquela tem partes de seu corpo adaptadas do corpo de mulheres deslumbrantes — e verdadeiras.
No universo em que Lil Miquela circula também cintilam outros modelos digitais de sucesso, como a delicada Imma e o despojado Blawko22. A primeira é apresentada como uma jovem japonesa que, segundo ela mesma, “pode desfrutar a mais alta tecnologia de simulação virtual”. Suas fotos, não se duvida, esbanjam realidade. Imma tem, atualmente, 175 000 seguidores. Blawko22, modelo negro “nascido” na Califórnia, se destaca por ir além das fotografias. Ele também é youtuber. Em seu canal, discute comportamento, corpo e sexo — já fez, inclusive, um vídeo sobre “como contar a seus pais que você se sente atraído por robôs”.
Lil Miquela e Blawko22 são “assessorados” pela mesma “agência”, a Brud, que na verdade é uma empresa de tecnologia do Vale do Silício envolvida em uma aura de segredos. Seu site, por exemplo, traz apenas um documento, no qual a Brud se descreve como “um grupo de solucionadores de problemas em robótica, inteligência artificial e seu uso para empresas de comunicação”. Em janeiro do ano passado, o site especializado em tecnologia TechCrunch informou que os criadores de Lil Miquela haviam conseguido 125 milhões de dólares do fundo Spark Capital, que investe em startups.
O negócio com “pessoas digitais” já despertou a atenção de grandes companhias. Um projeto chamado Neon, por exemplo, da Star Labs, subsidiária da Samsung, apresentou, no início deste ano, os “humanos artificiais”, como a empresa chama os avatares gerados por computação gráfica em tempo real, dotados de IA e capazes de entender o contexto das interações de que participam. A proposta, segundo o gigante sul-coreano, é criar “representantes de serviços, consultores financeiros, profissionais de saúde ou concierges”. Com o tempo, eles também estarão aptos a substituir “âncoras de TV, atores, porta-vozes ou mesmo ser nossos amigos e companheiros”. A ideia é oferecer ao público uma interface mais humana, que tenha expressões genuínas, consiga demonstrar emoções e até reagir diante de determinadas situações — uma sala de conferências cheia de gente como a gente, para citar uma possibilidade. O próprio nome Neon é uma espécie de acrônimo de “NEO humaN”, ou “novos humanos”.
Quando se estuda o impacto provocado por criaturas virtuais como essas esbarra-se, invariavelmente, em um sentimento: temor. Ele é explicado pela teoria do “Vale da Estranheza”, desenvolvida nos anos 1970 pelo roboticista japonês Masahiro Mori. De acordo com Mori, os humanos tendem a apresentar maior repulsa em relação a androides que se assemelham a eles; isso depois de uma simpatia inicial. Em 2010, um estudo da Universidade Harvard confirmou a tese ao analisar a reação de pessoas a seres digitais que gradualmente ganhavam feições humanas. Constatou-se que, quanto mais parecidos conosco, maior é o medo que os robôs nos provocam. Se as novas gerações continuarem a reagir assim, a fama de Lil Miquela e companhia poderá ser tão efêmera quanto a de certas ex-celebridades do mundo real.
Publicado em VEJA de 25 de março de 2020, edição nº 2679
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