Bernardo Correia: "Enquanto país, temos de ser capazes de transformar o talento que temos em talento digital" – Dinheiro Vivo
Numa altura em que o retalho se prepara para o pico do e-commerce, o country manager da Google em
Numa altura em que o retalho se prepara para o pico do e-commerce, o country manager da Google em Portugal insta as empresas a apostar mais no mercado digital e na sua internacionalização.
Bernardo Correia, Country Manager Google Portugal
© DR
O que nos diz a maturidade digital das empresas portuguesas?
Tenho visto uma transformação absolutamente fantástica do ecossistema português de e-commerce nos últimos anos. O que não quer dizer que tenha sido rápido o suficiente, mas vamos começar pelo princípio. Portugal era, e de algumas formas ainda é, dos mercados menos maduros da Europa no que toca ao comércio eletrónico. Eu atribuí a isto, e continuo a atribuir, um problema mais de oferta do que de procura.
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Oferta em que sentido?
No sentido das empresas portuguesas estarem abertas ao e-commerce e de criarem experiências de utilizador amigáveis – necessidades de pagamento, entregas em casa, todo o ecossistema que ampara o e-commerce e que faz com que uma pessoa que compra online tenha o conforto de que as coisas vão correr bem. Há sete anos era difícil. Era também óbvio que havia, nessa oferta, um Portugal a duas velocidades: havia empresas grandes que tinham feito algum trabalho de casa e investimento; mas a grande lacuna era o desenvolvimento tecnológico e digital das PME. Portanto, há uma viagem que foi feita e nós temos investido muito para tentar mudar isto em Portugal, porque o e-commerce, apesar de tudo, é um fator importantíssimo no desenvolvimento económico do país, e a digitalização das empresas é um fator crítico de competitividade num mercado mais global.
Consegue estimar o impacto do comércio digital na economia portuguesa?
Costumo dizer que o valor total do e-commerce a nível global é de cerca de cinco triliões de dólares e que nós, Portugal, temos uma capacidade de ir buscar o nosso quinhão muito reduzido. Um facto sintomático, por exemplo, é que os portugueses são, de longe, dos europeus que mais compram em sites que não são nacionais. Por exemplo, 50% das compras online que os espanhóis fazem são em sites espanhóis. Em Portugal, 80% são sites estrangeiros. Isto é indicador de alguma falta de notoriedade do lado da oferta e não da procura.
Mas os jovens são, provavelmente, os que mais compras fazem online. Têm uma literacia digital diferente, procuram preços diferentes, fazem comparações, não se importam de arriscar mandando vir de fora. Enquanto as pessoas mais velhas preferem o tradicional? Esta é uma leitura possível?
É uma leitura que acho que está genericamente correta. Há uma geração nova que é 100% digital, 100% móvel, que está preocupada em comprar o melhor produto ao melhor preço, venha ele de onde vier. E há uma geração mais tradicional, que prefere o comércio mais tradicional. O investimento na qualificação digital das pessoas de outra geração também é um fator importante, porque nós não vamos chegar lá só com os mais novos. Por exemplo, o Projeto Muda, que é uma parceria com a ACEPI, a Associação Portuguesa de Comércio Eletrónico, tem uma vertente só para seniores. Nós somos membros fundadores do Muda, é um dos projetos que apoiamos aqui em Portugal para tentar inverter essa situação.
De que forma é que o investimento das PME na transformação digital no comércio eletrónico compensa?
É uma questão absolutamente crítica. O mais importante a pensar no e-commerce é que as fronteiras são esbatidas. A oportunidade maior para o comércio eletrónico é transcender a dimensão do mercado português. Nós temos dez milhões de consumidores em Portugal, os Estados Unidos têm 350 milhões, se eu conseguir 1% do mercado americano, estou a falar de um terço do mercado português. Portanto, ter capacidade de ir buscar consumidores a qualquer lado do mundo é a oportunidade de negócio mais histórica que Portugal já alguma vez teve.
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E, além disso, toda a parte de gestão de investimentos em infraestruturas físicas, em lojas físicas, etc., é possível saltar. Um dos mercados mais desenvolvidos do mundo no comércio eletrónico é a China, e uma das razões é porque saltou toda a fase de construção de capex [despesa de capital], de investimento em tijolo, vamos lá. E o consumidor deu o salto automaticamente. É possível nós construirmos esse mundo a partir de Portugal. Existem várias empresas aqui que o fazem, já de alguma forma em escala global e nós trabalhamos com várias. Como a 360 imprimir, que é um player global a vender produtos para PME pelo mundo inteiro, que abriu recentemente nos Estados Unidos. A Indie Campers, que aluga autocaravanas um pouco por todo o mundo, que agora tem no site a dizer “somos o maior fornecedor de road trips nos Estados Unidos e na Europa”. A Care to Beauty, que vende cosmética e beleza para todo o mundo a partir do Porto. Temos empresas portuguesas que criam quantidades extraordinárias de valor através da internacionalização, que é permitida e possibilitada pelo comércio eletrónico. De outra forma, seria praticamente impensável atingir esse tipo de objetivos e de sonhar criar marcas, empresas, produtos e serviços globais a partir de Portugal.
Qual é o investimento total da Google em Portugal? Sendo o mais recente o sistema de cabos submarinos transatlânticos, que irá ligar Portugal, as Bermudas e os Estados Unidos.
Os nossos investimentos vão basicamente em três direções principais. A primeira é criar competências digitais na população portuguesa e criar essa capacidade de tanto as empresas como os consumidores terem acesso às melhores ferramentas, produtos e serviços digitais. O segundo é a despenalização, isto vai parecer, se calhar, pouco humilde, mas é a despenalização dos próprios produtos e serviços Google aqui em Portugal – e é algo que temos trabalhado muito. Chegaram sempre um bocado mais tarde. Não é a Google como um todo, nós aqui orgulhamo-nos muito de estar em Portugal há muito tempo, com presença física, pessoas, etc., mas mesmo em tecnologia sentimos que muitas vezes Portugal não está na lista da onda dos lançamentos. Orgulhou-nos muito, por isso, termos lançado há muito pouco tempo o Bard – o nosso chatbot de inteligência social – em português de Portugal, logo no início da vanguarda e não no fim da linha, na cauda desses investimentos.
E o terceiro pilar são então os cabos submarinos?
O último dos pilares é o investimento em infraestrutura de comunicações em Portugal, das quais eu realço dois investimentos muito grandes. O primeiro, no ano passado, foi o cabo Equiano, que é a maior autoestrada de informação alguma vez construída entre a Europa e África – vai de Sesimbra até à África do Sul -, é um dos cabos mais compridos do mundo, senão mesmo o mais comprido, e tem a capacidade de aumentar a ligação entre a Europa e África em termos de comunicações de uma forma astronómica. Há uma nova centralidade desses investimentos de infraestrutura de comunicações a passar por Portugal. Outro bom exemplo disso foi anunciado segunda-feira, o nosso novo cabo subaquático, que até tem nome português: Nuvem. Acho fantástico, porque esse cabo cria uma das maiores autoestradas de informação de sempre entre os Estados Unidos e a Europa e vai aterrar aqui em Portugal, vai ficar operacional a partir de 2026, os trabalhos já começaram.
Porquê essa centralidade em Portugal?
Há dois fatores críticos, um é a própria maturidade do mercado digital. Portanto, Portugal, como eu disse, pode ainda não estar na crista da onda de muitas coisas, mas já é um mercado muito mais maduro do que antes. E depois também é o ambiente regulatório positivo, construtivo, colaborativo, e o Governo português tem-nos apoiado muito nesse caminho, incluindo, como foi anunciado pelo ministro João Galamba, termos tido a capacidade de trabalhar com eles neste corredor de cabos subaquáticos que vai facilitar a parte regulatória de aprovações, etc., e que nos permite a nós olhar com otimismo para investimentos futuros.
Isso faz antever que em Portugal a Google terá mais trabalhadores, terá novos serviços?
Na nossa indústria, não só o segredo é a alma do negócio, como ainda é difícil fazer esse tipo de previsões a médio e longo prazo. Mas estou confiante que é um mercado para continuarmos a investir, para continuarmos a crescer e para termos uma presença em Portugal cada vez mais forte e mais importante.
O facto de termos aqui alguma escassez de recursos humanos é um problema para a Google, ou sendo uma grande tecnológica isso não se coloca?
É uma boa pergunta, porque acho que a escassez em Portugal é relativa. Digo isto porque vivemos num sítio fantástico, com bom tempo, dá para ver que Lisboa é uma cidade atrativa para qualquer pessoa que cá venha. Nós temos de fazer mais e melhor na formação de talento em Portugal, têm de sair muito mais pessoas das universidades formadas em tecnologias de informação, etc., mas isso não vai resolver o problema a curto e médio prazo. Nós temos de ser melhores a atrair talento internacional para a tecnologia. Acho que é muito isso que o Governo também tem tentado fazer com projetos como o Tech Visa. Temos de ter a capacidade de conseguir trazer essas pessoas, manter e pagar-lhes salários competitivos a nível internacional. Se eu quiser um Chief Marketing Officer de qualidade global, tenho de ir buscar aos Estados Unidos e eles vêm para Portugal, gostam da experiência, etc., mas obviamente depois é preciso que o Competition Package seja um pouco competitivo.
O custo de vida em Portugal, nomeadamente em Lisboa, ainda é competitivo para isso, ou já começa a estar fora da linha da competitividade?
Eu acho que Portugal vai ser sempre um destino super atrativo e interessante para investimento e para atração de talentos. Eu cheguei da Califórnia no sábado. A Califórnia continua a ser o maior hub de talentos de tecnologia no mundo, e não é propriamente um sítio acessível financeiramente. Acho que Portugal tem todas as condições para ser tão bem-sucedido na próxima década como foi na última que já passou, em termos de capacidade de atração e em termos de sermos um líder em digital.
Isso pode trazer problemas sociais para o resto da população que não conseguir acompanhar esses níveis de remuneratórios?
É aí que entra a questão da requalificação. Enquanto país, temos de ser capazes de transformar o talento que temos em talento digital. E é por isso que apostámos em produtos, serviços e projetos como os ateliês digitais, como os Career Certificates, que nos permitam ajudar e apoiar o ecossistema a fazer essa transformação como um todo, de uma forma transversal ao país e não limitado a alguns centros geográficos, transversal à população em todos os seus eixos demográficos, independentemente da faixa etária.
Qual é o valor de investimento nos cabos submarinos?
Nós não divulgamos esse número especificamente, até porque o segredo é a alma do negócio.
Quais é que são os setores de atividade mais alinhados ou que estão mais direcionados neste momento para esta transformação digital, para o e-commerce, para as competências digitais, para trabalhar o seu negócio de forma digital?
Isto é uma pergunta super importante porque não deveria ser preciso responder a essa pergunta, ou seja, deveria ser transversal. Todos os setores de atividade têm de ser digitalizados e isso é algo que em Portugal é bom que nós consigamos encaixar, que a transformação digital é transversal a tudo. É claro que, no meio disto tudo, há setores de atividade que são mais importantes para a economia portuguesa como um todo. É sempre importante dar o caso do turismo, porque é também um sucesso de transformação digital. Não há vez que nós não olhemos, por exemplo, para o sucesso dos hoteleiros em Portugal que não tenham a ver com a sua capacidade de transformar o canal de vendas para um canal direto, para se comprar diretamente no site ou em parceiros digitais. As companhias aéreas, a capacidade de transferir consumidores para o seu canal digital e, daí, aumentar as margens do seu negócio. E acho que o próprio Turismo em Portugal, que montou uma estratégia de marketing digital de classe mundial, está farta de ganhar prémios em todo o lado e mais algum pela qualidade da estratégia digital de atração de turistas para Portugal. O segundo setor de atividade que eu acho que é absolutamente crítico, é o retalho, são as vendas. Mas eu acho que há uma componente específica do retalho que tem de ser transformada com mais urgência e que nós temos sentido essa urgência, que é a parte da internacionalização, que é sermos capazes de servir bem não só aos consumidores portugueses, mas aos consumidores internacionais. Aí há algum caminho para percorrerem alguns retalhistas mais tradicionais, mas há inúmeros bons exemplos, alguns dos quais eu já citei. Se eu puder dar mais um exemplo, é o próprio setor de tecnologia português, fortíssimo e é baseado numa década de criação de unicórnios, startups e por aí fora, mas é um setor especificamente muito virado para o B2B, para as vendas a outras empresas. É preciso fazer também um trabalho de transformação de empresas que já são tecnológicas e já são digitais, para que sejam ainda mais competitivas e consigam passar não só de unicórnios e de grandes promessas da tecnologia para grandes empresas estabelecidas, tecnológicas, que possam fazer os seus IPOs e que possam ter uma presença ainda maior no sistema global tecnológico.
Eu não podia deixar de colocar esta questão em relação ao setor da comunicação, porque muitas das vezes tem sido crítico em relação às grandes tecnológicas e ao facto de dominarem os mercados. Mas que ferramentas podem tornar o setor mais concorrencial?
É uma excelente pergunta e obrigado por me fazer, porque tenho tido muitas conversas durante muitos anos à volta desse assunto. O que eu acredito em relação ao setor da comunicação é muito semelhante ao que acredito em quase todos os outros setores de que estivemos a falar, retalho, turismo, tecnologia, seja o que for. É preciso internacionalizar, é preciso maior eficiência e automatização, especialmente através da adoção de ferramentas de inteligência artificial, é preciso oferecer aos leitores, neste caso, ou às pessoas que estão a consumir o conteúdo, mais do que eles querem, e saber usar informação, dados, para ser mais relevante em relação àquilo que as pessoas que estão a consumir. Tem de ser um setor mais centrado em data, tem de ser um setor mais internacionalizado e tem de ser um setor mais eficiente. Nós temos feito essa viagem com o setor dos meios de comunicação, apoiando o setor a inovar, que nós achamos que é a principal forma de o setor média passarem a ser empresas mais rentáveis, mais eficientes e com mais sucesso.
Qual o impacto financeiro da Google na economia portuguesa?
São muitos milhares de milhões de euros que nós trazemos para a economia portuguesa, não só em investimento direto, mas também no valor que os nossos produtos e serviços acrescentam à economia como um todo. Como eu disse, cada vez que uma PME ou uma startup usa os produtos e serviços Google para exportar para os Estados Unidos, por exemplo, esse é valor e é PIB que estamos a trazer para a economia portuguesa. São vendas adicionais que estamos a fazer que não seriam feitas de outra maneira. E eu acho que isso conta de uma forma absolutamente gigante para a economia portuguesa.
Que desafios é que o mercado retalhista enfrenta neste momento e como é que esta peak season (temporada alta) pode impactar nos resultados esperados?
Uma das coisas mais importantes em relação à peak season é que todas são “a mais importante” que já aconteceram, sempre. Isto por uma razão muito simples: a penetração do e-commerce sobe ano após ano.
Vende-se sempre mais?
Vende-se sempre muito mais. Aliás, este ano, nós começámos a ver pesquisas por peak season em Portugal em julho. E 200% mais altas do que no ano anterior. Todos os anos há mais exploração, mais interesse, mais curiosidade dos consumidores. As peak seasons têm um efeito não só restrito no tempo, enquanto duram a Black Friday, Cyber Monday, etc., mas também têm um impacto estrutural no próprio ecossistema, trazem mais pessoas para o comércio eletrónico, trazem mais marcas para a oferta de produtos e serviços no comércio eletrónico. Quanto mais cedo nos anteciparmos, se formos capazes de lidar bem com este comportamento do consumidor que é cada vez mais importante, todos os anos, melhor preparados estaremos para o ano seguinte e os outros a seguir.
E as empresas têm a possibilidade de investir no e-commerce?
Eu diria que as empresas não têm escolha, porque se o consumidor está a mudar para o comércio eletrónico, se não forem as empresas portuguesas a suprir essa necessidade, alguém fazê-lo, e serão empresas de outros países. Portanto, temos de fazer essa transformação com urgência, já falámos sobre isso, mas se não o fizermos, alguém o fará por nós.
A tecnologia é essencial para toda esta transformação e para nós podermos diminuir a décalage que temos em relação à média europeia. Um dos termos mais pesquisados no motor de busca no Google foi inteligência artificial. Qual é a vossa posição sobre a IA?
É uma pergunta muito abrangente, mas vou tentar ser específico. Nós costumamos dizer que para ser um líder em inteligência artificial é preciso ser, ao mesmo tempo, arrojado e responsável. Por arrojado, quero dizer termos a audácia de experimentar e de tentar utilizar uma tecnologia que é disruptiva para benefício de todas as pessoas do mundo, ou seja, que o saldo seja positivo para a população. A segunda parte, além dos princípios, é os produtos certos. Nós temos produtos que são capazes de mitigar qualquer utilização menos positiva desse tipo de tecnologia.
Só uma última pergunta, que é um pouco provocadora também, mas acha que o ser humano será ultrapassado pela inteligência artificial?
De todo. Eu acho que, quanto muito, o ser humano está a entrar numa das fases mais interessantes para o seu desenvolvimento. Porque nós, na prática, temos a capacidade de ver a nossa criatividade expandida de uma forma como nunca foi possível até agora. Um exemplo simples, eu, desde pequeno, adorava de pintar. Não tenho jeito nenhum, mas hoje em dia tenho a capacidade de chegar a um motor de geração de imagens e descrever a imagem que eu gostava de criar. E consigo tornar-me eu próprio num pintor digital, mas consigo dar asas aos meus sonhos e à minha imaginação, utilizando a inteligência artificial de uma forma como nunca foi possível. Nós conseguimos fazer muito mais e ser muito mais, utilizar muito melhor os recursos que temos do que aquilo que faziamos até agora. Quantas horas não são gastas a transcrever reuniões e a tirar minutos, etc.? Coisas que as máquinas podem fazer. Quantas horas não são utilizadas a fazer slides de uma apresentação, que uma pessoa fica até às tantas da manhã e que, eventualmente, poderia ter sido criada por uma máquina. Acho que se soubermos requalificar os nossos recursos para tirar partido destas tecnologias, então vamos ter uma geração que será muito mais produtiva e muito mais eficiente do que alguma geração foi até hoje, e seremos capazes de ter uma sociedade capaz de sonhar mais alto, de fazer coisas mais inteligentes e mais criativas do que aquilo que foi possível fazer até hoje.