Consensualidade regulatória e economia digital – JOTA
Economia DigitalAlinhamento entre instituições formais e informais alivia pressão sobre a agenda estatalA convergência digital das últimas décadas tem
Economia Digital
Alinhamento entre instituições formais e informais alivia pressão sobre a agenda estatal
A convergência digital das últimas décadas tem facilitado a vida das pessoas. No entanto, evidencia-se cada vez mais desafiador compreender os pormenores tecnológicos subjacentes. Esse contexto amplifica a assimetria de informações entre os diversos fornecedores de produtos e serviços com aderência às novas tecnologias e os reguladores.
Exemplificativamente, permanece um desafio a avaliação da opacidade algorítmica de diversas plataformas digitais, além da transparência com a qual se obtém o consentimento do usuário para o uso de seus dados pessoais. Isto é, a assimetria de informações entre instituições governamentais e agentes do mercado – que normalmente dispõem de informações mais precisas sobre os seus aspectos[1] –, que já era perceptível no mundo analógico anteriormente ao advento da internet, tende a desvendar-se em intensidade cada vez mais acentuada.
Não se revela claro, por exemplo, se os usuários de plataformas digitais vêm sendo devidamente cientificados que foram submetidos a algum tipo de experimentação algorítmica desenvolvida com a finalidade de aprimorar os instrumentos de geração de engajamento e a assertividade das soluções de publicidade e de intermediação de produtos e serviços[2]. E isso pode gerar questionamentos não apenas sobre a transparência na obtenção do consentimento, mas, também, sobre se os experimentos com indutores comportamentais vêm sendo adequadamente publicizados à sociedade como um todo. A princípio, isso pode estar em dissonância em relação ao direito à informação clara e adequada sobre o produto ou serviço fornecido a que se referem os arts. 6º, inc. III, do CDC[3], 7º, inc. II, da Lei 8.987/95[4], 3º, inc. IV, da Lei 9.472/97 (LGT)[5], 7º, inc. III, da Lei 12.965/14 (MCI)[6] e 9º da Lei 13.709/18 (LGPD)[7].
Adotando-se o postulado de que agentes econômicos agirão racionalmente para maximizar seu bem-estar a partir de uma avaliação, na margem, de custos, benefícios e riscos da ação tomada, espera-se que, numa regulação predominante respaldada em instrumentos de comando-e-controle, os regulados tenham poucos incentivos para uma postura cooperativa com os diversos reguladores (em matéria de produção de dados, do consumidor, da economia digital, do fluxo comunicacional online etc.).
Essas plataformas, por sua vez, têm o seu modelo de negócios construído sobre ativos, no geral, intangíveis (como os níveis de engajamento dos usuários, a assertividade algorítmica a partir da aplicação de indutores comportamentais, as externalidades de rede etc.). Isto é, não são mais os empreendimentos de brick and mortar do mundo pré-internet.
Se, naqueles tempos, em que os casos apresentavam algum nível de tangibilidade sensorial, já se percebiam limitações operacionais intransponíveis para as autoridades de enforcement administrá-los a contento, a exemplo do famoso caso da Barrilha[8], é razoável supor que esse gap entre regulador e regulado continuará se ampliando progressivamente na transição para a economia digital.
Embora as falhas de mercado (v. g., competição imperfeita, assimetrias de informação, seleção adversa, problemas de agência, emprego de recursos comuns, abuso de poder de mercado, monopólios naturais, externalidades – negativas e positivas[9] – etc.) sejam invocadas como deflagradores da regulação estatal, não se depreende daí que, ipso facto, essa regulação conseguirá administrar os problemas a que se propõe enfrentar. Como efeito, medidas para correção dessas falhas de mercado podem deflagrar “falhas de governo”, marcadas por “intervenções governamentais incorretas que geram distorções maiores do que os problemas que elas se propunham a resolver[10]”.
Em obra de referência sobre o tema da regulação responsiva, Ian Ayers e John Braithwaite (1992) promovem uma revisão das tendências da discussão sobre desregulação desenvolvidas na década de 1980, em que o foco sobre a decisão binária entre intervir ou não intervir é deslocado para se trabalhar com a ideia de responsividade regulatória, que comporta gradações de atuação, as quais vão desde a interlocução dialogada com o setor regulado até uma intervenção mais “drástica” do regulador, para que não existam soluções regulatórias ótimas ou melhores, “mas apenas soluções que respondem melhor do que outras às configurações plurais de apoio e oposição que existem num determinado momento da história”[11].
Um dos pontos que levou a essa mudança de abordagem consiste na percepção de que as agências governamentais, na verdade, não dispõem dos instrumentos necessários para fazerem valer suas determinações exclusivamente com base em custosas disposições de comando-e-controle, que demandam formalidades imprescindíveis – associadas à preservação das garantias do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal – para que se mitiguem as perspectivas de falsas condenações (falsos positivos) e para que se preserve a necessária confiança nas instituições democráticas.
Dito de outra forma, recorrer apenas ao monopólio da força característico do Estado moderno (comando-e-controle) tem-se revelado como medida insuficiente para o adequado enfrentamento dos problemas que os governos devem administrar: uma articulação inteligente desse monopólio com outros recursos mais brandos se mostra como uma postura necessária para a produção de resultados mais satisfatórios para a sociedade como um todo.
A partir daí, dissemina-se a ideia de que a decisão fundamental para as instituições estatais deixa de ser “regular ou não regular?”, mas sim, “como regular?”. Antes de se recorrer a abordagens mais incisivas, é preferível promover-se o diálogo tanto na construção de soluções regulatórias em caráter geral e abstrato por instrumentos consensuais (v.g., de consultas públicas[12], de autorregulação regulada[13]) como na construção das soluções para os casos concretos particularizados, por meio do escalonamento de resposta em função do nível de não cooperação do agente envolvido.
Além de otimizar a aplicação dos recursos públicos, essas soluções também possuem uma vantagem comparativa associada a certo tom de legitimidade que delas provém. Afinal de contas, a aceitação voluntária de um código de conduta não traduz apenas regras exigíveis em si mesmas, mas, também, valores a serem seguidos como instituição informal[14]. O alinhamento entre instituições formais (regulações “oficiais”) e informais alivia a pressão sobre a agenda estatal, pois estas últimas não dependem de recursos do pagador de impostos para a sua observância, normalmente recorrendo a instrumentos reputacionais difusos.
Partindo da premissa de que a atuação das instituições governamentais é um bem escasso, cujo custeio depende dos recursos vertidos pelo contribuinte, a ideia da busca de consenso entre Administração Pública e agentes privados, com a calibração adequada de instrumentos de regulação responsiva, mostra-se como a saída mais eficiente para a condução das agendas governamentais nessa transição para a economia digital.
Desta forma, conclui-se que as instituições governamentais, para lidarem com as políticas públicas que estão incumbidas de promover (por instrumentos de regulação, de enforcement etc.), necessitarão abraçar cada vez mais modelos dialogados para que possam simplesmente continuar exercendo suas atribuições ordinárias.
No entanto, seria razoável supor que essa mudança de abordagem não implica necessariamente melhoria do output entregue em relação ao cenário atual. Se o gap informacional mencionado persistir em ascendência, e mantidas idênticas todas as demais variáveis, faz sentido esperar uma queda de performance com o passar do tempo, pois os custos de informação para a adequada consecução dos fins almejados por uma dada política, tanto para o nível macro (regulatório) como para o nível micro (dos casos concretos), farão com que as ações governamentais se tornem cada vez mais custosas.
[1] Cf. HAYEK, Friedrich. The use of knowledge in society. American Economic Review. v. 35, n. 4, p. 519-530.1945.
[2] Cf. PARASCHAKIS, Dimitris. Towards an Ethical Recommendation Framework. 2017 11th International Conference on Research Challenges in Information Science (RCIS). IEEE: Brighton, UK. 2017. p. 211-220, doi: 10.1109/RCIS.2017.7956539.
[3] Brasil. Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 10 jan 2007. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8078compilado.htm. Acesso em: 11 set de 2023.
[4] Brasil. Lei 8.987, de 13 de fevereiro de 1995. Dispõe sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos previsto no art. 175 da Constituição Federal, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 28 set 1998. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8987cons.htm. Acesso em: 11 set de 2023.
[5] Brasil. Lei 9.472, de 16 de julho de 1997. Dispõe sobre a organização dos serviços de telecomunicações, a criação e funcionamento de um órgão regulador e outros aspectos institucionais, nos termos da Emenda Constitucional nº 8, de 1995. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 17 jul 1997. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9472.htm. Acesso em: 11 set de 2023.
[6] Brasil. Lei 12.965, de 23 de abril de 2014. Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet do Brasil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 24 abr 2014. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm. Acesso em: 11 set de 2023.
[7] Brasil. Lei 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 15 ago 2018. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm. Acesso em: 11 set de 2023.
[8] Cf. CARVALHO, Vinícius Marques; RAGAZZO, Carlos Emmanuel Joppert. Defesa da concorrência no Brasil: 50 anos. Brasília: Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE). 2013. p. 43-45. O caso tratou de acusação de prática de dumping por empresas de vidros e importados de barrilha. Conforme a lei de defesa da concorrência vigente à época (Lei 4.137/62), essa prática não era elencada expressamente com conduta anticoncorrencial. O caso foi julgado improcedente por falta de provas. No entanto serviu de benchmark para que se afastasse a taxatividade do rol de condutas descrita na legislação em referência. Para um estudo minucioso do caso, cf. GUIMARÃES, Aluysio. O Caso da Barrilha. In.: Cadernos de Administração Pública, v. 64. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1966.
[9] Cf. PORTO, Antônio Maristrello; GAROUPA, Nuno. Curso de Análise Econômica do Direito. 2. ed. Barueri: Atlas. 2022. p. 186. Edição do Kindle.
[10] Cf. MENEGUIN, Fernando; MELO, Ana Paula Andrade de. Uma nova abordagem para a regulação econômica: soft regulation. Revista do Serviço Público. v. 73. p. 201, 2022.
[11] AYERS, Ian; BRAITHWAITE, John. Responsive Regulation: Transcending the Deregulation Debate. Oxford: Oxford University Press. 1992. p. 5. (tradução livre).
[12] Cf. PALMA, Juliana. Atividade normativa da Administração Pública. Estudo do processo administrativo normativo. Tese de doutorado defendida na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. 2014. Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2134/tde-18052017-131051/publico/Tese_Juliana_Bonacorsi_de_Palma_versao_final.pdf. Acesso em: 11 set. 2023.
[13] Cf. BINENBOJM, Gustavo. Poder de Polícia, Ordenação, Regulação: Transformações político-jurídicas, econômicas e institucionais do Direito Administrativo Ordenador. Rio de Janeiro: Fórum. 2016.p. 302.
[14] Cf. NORTH, Douglass. Institutions, Institutional Change and Economic Performance. Cambridge: Cambridge University Press, 1990, p. 5: “We define informal institutions as socially shared rules, usually unwritten, that are created, communicated, and enforced outside officially sanctioned channels”.
Bruno Dantas – Ministro presidente do TCU. Pós-doutorado em Direito (UERJ), doutor e mestre pela PUC-SP
Alexandre Freire – Conselheiro Diretor da Anatel, presidente do Centro de Altos Estudos em Comunicação Digital e Inovação Digital (CEADI/Anatel), doutor em Direito pela PUC-SP e mestre em Direito pela UFPR
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