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Inteligência artificial protagoniza revolução sem precedentes na medicina – VEJA

Há uma questão intrigante e fundamental nesta era dominada por algoritmos: a partir de que momento o computador superará

Inteligência artificial protagoniza revolução sem precedentes na medicina – VEJA


Há uma questão intrigante e fundamental nesta era dominada por algoritmos: a partir de que momento o computador superará as capacidades humanas para prover as melhores decisões em campos tão distintos quanto engenharia, direito e medicina? Caminho tecnológico sem volta, a inteligência artificial (IA) está mudando profundamente a maneira de aprender, trabalhar e — eis um salto inédito — se cuidar. No campo da saúde há uma revolução em andamento, interessante demais para ser negligenciada. A ideia de um robô capaz de substituir o doutor não se sustenta — pelo menos, por ora, ao pé da letra —, mas é inegável o papel que esse recurso já ocupa e ocupará na jornada de médicos e pacientes, com ganhos palpáveis para todo mundo, em clínicas particulares, nos hospitais público e privados, dentro de casa, no cotidiano doméstico.
Nada, é verdade, supera a sensibilidade humana no trato com o outro. Contudo, há claros indícios de avanços notáveis. A máquina já começa, por exemplo, a vencer o ser humano em momentos críticos como a rápida detecção de um derrame. Um estudo recém-publicado demonstrou que um programa treinado para essa finalidade foi capaz de reconhecer 63% dos episódios de acidente vascular cerebral (AVC) ante 57% do índice de acerto entre os humanos, diferença significativa para salvar vidas.
As perspectivas são fascinantes. As pesquisas com IA deram seus primeiros passos na década de 50, mas só decolaram realmente agora, outro dia mesmo, em costura acelerada entre instituições de ensino, indústrias e startups. A ferramenta representa, na visão de Lloyd Minor, reitor da faculdade de medicina da Universidade Stanford, nos Estados Unidos, a maior transformação nessa seara desde a introdução dos antibióticos na década de 20. É extraordinário.
O potencial transformador associado a questões éticas, e elas são muitas, instigou grandes entidades a elaborar diretrizes e coordenadas para o meio médico. A rigorosa e influente agência regulatória americana, a FDA, acaba de anunciar a criação de um comitê consultivo de saúde digital, cuja missão será balizar o admirável mundo novo de computadores superinteligentes, realidade virtual e dispositivos vestíveis (os chamados wearables). Na mesma direção avançou a Organização Mundial da Saúde (OMS), que, na quinta-feira 19, lançou um documento com regulamentações para IA visando à segurança do sistema e dos pacientes. A entidade destacou o potencial da tecnologia para aperfeiçoar diagnósticos e procedimentos, bem como ampliar o acesso a atendimento de pessoas que vivem em regiões remotas do planeta.
A IA é aplaudida entre cientistas e clínicos pelo potencial de liberar os médicos para atender com mais tempo e atenção os pacientes. É celebrada também por poder nortear escolhas de tratamento mais certeiras com base na análise em tempo real de milhares de estudos e otimizar a gestão da saúde coletiva. Para tanto, como pontua a OMS, será fundamental garantir transparência e qualidade dos dados, bem como a realização de pesquisas atestando as possíveis vantagens da tecnologia. “Nossa nova orientação apoiará os países a regulamentar a área com mais eficácia para aproveitar seu potencial ao mesmo tempo que se minimizam eventuais riscos”, declarou Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da OMS.
Tais recomendações ganham relevo quando se olha para um novo capítulo dessa história, o uso da chamada IA generativa. Se antes o computador era treinado para reproduzir padrões após ler uma enxurrada de dados, agora a máquina aprende sozinha a fornecer soluções. Isso ficou mais claro no dia a dia com o advento do ChatGPT, programa que constrói conteúdos sob demanda. Na medicina, esse tipo de ferramenta dá insights preciosos na triagem de pacientes, na gestão de insumos necessários e no suporte a cirurgias. É a máquina aprimorando o engenho e o trabalho do homem. A efervescência do ramo se materializa em cifras. Um recente levantamento da plataforma de inovação Distrito revela que as healthtechs que atuam com IA receberam um investimento de 1,4 bilhão de dólares na América Latina desde 2019. O Brasil lidera em número de startups do setor, com 1 244 unidades — bem à frente do México, segundo colocado, com 346. “A pandemia acelerou o desenvolvimento e a adoção dessas inovações”, diz Eduardo Fuentes, chefe de pesquisa da Distrito.
Há, claro, ressalvas que não podem ser relevadas. Os computadores não são infalíveis, e todo pequeno erro no trato com o corpo é grave — daí as preocupações. Um estudo com 11 000 americanos feito pelo Pew Research Center mostrou desconfiança dos pacientes com o suporte high-tech: 60% apontaram desconforto com médicos que confiam na IA. Por outro lado, quando questionados se a IA poderia diminuir erros de profissionais da saúde, 40% concordaram e apenas 27% discordaram. Existe, contudo, um consenso: com boa formação, por meio de cursos práticos, as equipes médicas atuarão com mais embasamento e agilidade, tendo a seu lado um copiloto virtual para apoiar as diferentes etapas do atendimento. “A acurácia vai ser muito grande, mas nunca vai substituir a relação médico-paciente, que é sagrada. Sempre haverá a supervisão de um profissional de saúde”, afirma André Cripa, diretor de inovação da empresa de tecnologia CTC.

Um exemplo dessa participação ativa pode ser extraído da aplicação da IA para decidir sobre a remoção de tumores cerebrais no momento da cirurgia, ato difícil mesmo para os mais experientes cirurgiões, pois nem sempre as imagens pré-operatórias são conclusivas sobre as regiões que devem ser extirpadas. Descrito por pesquisadores holandeses em um artigo publicado neste mês na revista Nature, o software batizado de Sturgeon ofereceu uma leitura precisa em 45 de cinquenta amostras sequenciadas em um prazo de quarenta minutos — índice inalcançável para o olho humano. Estudos em andamento investigam outros programas capazes de rastrear com maior assertividade tumores como o de pâncreas e colorretal e calibrar a seleção de remédios de acordo com o que se espera da sua atuação no organismo do paciente.
Embora promissora, a IA continuará exigindo uma tomada extra de zelo. Isso significa passar sempre pelo escrutínio científico, blindar-se de hackers e cibercriminosos e superar questões que vão além da tecnologia em si, uma vez que envolve dados e decisões que podem ser sigilosos e repercutem diretamente na vida das pessoas. Referência nacional no tema, Alexandre Chiavegatto Filho, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP, afirma que as ferramentas digitais têm pela frente o desafio de lidar com a diversidade humana e suas complexas implicações na saúde. “É preciso desenvolver sistemas que se retroalimentem, calibrem suas regras e evitem possíveis preconceitos contra grupos vulneráveis, por exemplo.” Somar, em vez de substituir: essa parece ser a chave do histórico momento.
Publicado em VEJA de 20 de outubro de 2023, edição nº 2864
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