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Não basta regular, é preciso ter infraestrutura digital pública, diz especialista – UOL

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Regular a internet para restringir o poder das big techs é necessário, mas não suficiente. É preciso investir em uma infraestrutura pública digital, com uma política industrial para isso, seguindo o exemplo da Índia e dos EUA.
Esse é o alerta do especialista em tecnologia Evgeny Morozov, que fará nesta segunda-feira (28) uma palestra em São Paulo, promovida pelo Comitê Gestor da Internet.
Depois, o pesquisador se reunirá com integrantes dos ministérios da Fazenda, Ciência e Tecnologia, e da Secom (Secretaria de Comunicação Social), em Brasília, para discutir políticas digitais.
Para Morozov, se não investirem e tornarem a infraestrutura digital um bem público, países como o Brasil vão reproduzir, e aprofundar, a armadilha da dependência —grandes corporações, a maioria delas americanas, estão se apropriando gratuitamente de dados para treinar modelos de inteligência artificial e irão vender esses serviços para o Sul Global, e vender caro.
O sr. acaba de lançar o podcast “The Santiago Boys”, sobre a tentativa do governo chileno de Salvador Allende de criar uma tecnologia nacional que beneficiasse a sociedade e reduzisse a dependência de multinacionais. Pensando no momento atual, qual é a importância de regular as big techs e de investir em tecnologias próprias?
O Vale do Silício se expande como um gás. Começa em uma área, expande-se para outras, e, sem regulamentação, se espalhará por toda parte. Temos visto esforços das grandes empresas de tecnologia nos EUA para entrar na área da saúde, educação e segurança nacional.
Elas começaram como mecanismos de distribuição de conteúdo, apenas organizando informações e vendendo publicidade. Agora, tornaram-se uma porta de entrada para quase tudo.
Existem duas abordagens possíveis. Uma é tentar evitar que esse “gás” se espalhe —impor restrições aos dados que podem ser usados para, por exemplo, inteligência artificial generativa. Mas isso não é ambicioso o suficiente, porque basicamente força os cidadãos a escolher entre não ter nada ou ganhar o ‘objeto brilhante’ que vem do Vale do Silício e promete fazer tudo.
Nos últimos dez anos, eu tenho descrito e criticado essa ideologia, de dizer que a tecnologia é uma solução, um pacote que resolve todos os problemas sem necessariamente informar ao mundo quais são os custos. E, ao mesmo tempo, não há nada do outro lado, existe apenas o Estado regulador buscando impedir que essa digitalização, essa tempestade do Vale do Silício aconteça.
Então, nesse sentido, a segunda opção é criar infraestrutura pública robusta que possa abarcar o maior número possível de camadas desses sistemas digitais. Esses sistemas precisariam estar nas mãos do público, seja como estatais, seja como instituições.

Não há motivo para tecnologia como a IA generativa não ser parte ou uma extensão do trabalho realizado por instituições culturais financiadas pelos contribuintes. Temos iniciativas financiadas por impostos para digitalizar livros, fomentar cultura, estimular projetos acadêmicos. Tudo isso gera dados, imagens, sons.
Aí alguém do Vale do Silício chega, extrai tudo isso, gera IA generativa e vende de volta ao Estado. Faz sentido se você é um gestor de ativos ou um capitalista de risco, não faz sentido do ponto de vista do benefício público.
A regulamentação é importante, mas não podemos apenas discutir o que fazer com relação ao WhatsApp ou ao Facebook. Precisamos pensar o que fazer a respeito dessas enormes infraestruturas digitais que empresas privadas estão vendendo de volta às instituições públicas e aos cidadãos.
Em um ensaio publicado no New York Times em junho, o sr. discute como o Estado e as pessoas estão abrindo mão de determinados serviços e sistemas e transferindo essas funções para empresas de tecnologia. Quais são os perigos desse processo?
Quando se trata de serviços de ponta como computação em nuvem e inteligência artificial, estamos falando de um punhado de empresas americanas sediadas no Vale do Silício.
Elas aprenderam a lição nos últimos cinco anos, depois de serem pegas desprevenidas com a reação negativa que começou a surgir após a eleição de [Donald] Trump e da revelação do escândalo da Cambridge Analytica.
Isso criou um ambiente de discussões políticas e regulatórias para o qual elas não estavam preparadas. E então elas perceberam que não basta fazer lobby, é preciso também moldar a discussão.
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As empresas lançaram uma ofensiva de charme, pedindo proativamente a regulamentação. Elas sabem que as chances de Washington chegar a um conjunto inteligente de políticas com as quais a esquerda e a direita concordem são nulas.
Então, elas acabam falando “nos regulem”, mas sabem que isso nunca acontecerá. Concordam com a regulamentação desde que ela não os prejudique. E querem controlar a discussão sobre isso. Insistem que é preciso apoiar algo como o ChatGPT, mesmo que o modelo de negócio dele seja completamente obscuro, não muito diferente do SoftBank, Uber ou WeWork, empresas que prometem o impossível.
Só depois o resto de nós percebe que elas estão operando com dinheiro emprestado. É fácil operar com dinheiro emprestado quando as taxas de juros são zero. Mas se olharmos para o Twitter, somente os pagamentos de juros em outubro, após a aquisição por Elon Musk, são algo em torno de US$ 1,5 bilhão. E quando você enfrenta um pagamento de juros desse tipo, fará de tudo para cortar serviços extras, cobrar por serviços e produzir recursos extras pagos.
Provavelmente está acontecendo a mesma coisa com o ChatGPT. Os políticos deveriam insistir em avaliar o ChatGPT antes de permitir que Sam Altman [fundador da Open AI, que criou o ChatGPT] se encontre com primeiros-ministros.
O sr. cunhou o termo ‘solucionismo’ para a ideia falsa de que todo problema tem uma tecnologia que pode solucioná-lo de forma fácil e sem custos. O que acontece quando um serviço público é substituído por uma tecnologia, muitas vezes de propriedade de empresas que formam oligopólios?
Construímos parques, bibliotecas e ruas públicas. Não há uma taxa associada a quanto você usa um livro na biblioteca, porque se supõe que é um bem público que permite que você se torne mais inteligente e contribua para a sociedade.
Se Elon Musk tivesse de administrar uma biblioteca pública, haveria cobrança por cada página, sorriso e anotação que você fizesse. Já vemos isso com mensagens diretas no Twitter, que você nem pode usar da mesma forma como antes, a menos que se torne um assinante pago.
Então, é uma forma de criar escassez artificial em contraposição à promessa inicial de abundância digital. Isso mostra a hipocrisia suprema na posição do Vale do Silício, as palestras TED que esses ideólogos dão todos os anos são sobre abundância digital, sobre contornar os limites do mundo físico porque o digital nos permite ter tudo em quantidades ilimitadas.

Um guia do New York Times em formato de newsletter para você entender como funciona a IA
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A única maneira de sair desse problema é assumir que a infraestrutura digital é um bem público, não é um custo, é um bem facilitador. Na dinâmica atual, grandes empresas de tecnologia e as que têm dinheiro dos capitalistas de risco podem se beneficiar da IA, da computação em nuvem e de todos esses outros serviços mais do que outras.
Em um sistema mais progressista, a dinâmica seria revertida: as ONGs e as startups menores realmente obteriam esses recursos gratuitamente ou a uma taxa menor, e as grandes empresas teriam de pagar a mais. Então, você teria uma espécie de imposto progressivo para os serviços digitais.
Mas é muito difícil defender essa lógica quando você está enfrentando o bloco solucionista dizendo que somente ao digerir todos os dados do mundo seremos capazes de curar o câncer. De repente, se você começar a regular as empresas, logo estará impedindo a busca por uma solução para o câncer, o que, é claro, é ridículo. Mas essa é a retórica deles.

O fato de sermos tão ingênuos e cairmos tão facilmente nessa retórica é indicativo da falta de alternativa progressista, diz mais sobre a fragilidade ideológica, intelectual e política da esquerda do que sobre a esperteza do setor digital.
Política industrial se transformou em um termo tóxico. Em um país emergente como o Brasil, deveria haver políticas para estimular a infraestrutura pública digital?
Em certo sentido, por um breve período, a política industrial era um termo tóxico. Mas, na prática, nunca foi, pelo menos nos Estados Unidos. Lá, devido à influência externa do Pentágono, sempre houve uma política industrial invisível que informava como a economia era formada e quanto era gasto.
Nos últimos anos, no governo Biden, há apoio aberto à política industrial, que é usada como uma forma de reconquistar os eleitores da classe trabalhadora que migraram para Trump. Então, se a política industrial é usada no que costumava ser o bastião de resistência a ela, não há motivo para outros países não a adotarem. Biden está fazendo isso em todas as áreas, com chips, inteligência artificial, 5G.
O Brasil precisa ignorar as críticas tradicionais à política industrial, os argumentos de que ela não funciona. Muitas dessas críticas são desonestas.
Se o Brasil não fizer isso, pode acabar enfrentando contas cada vez mais altas pelo uso de serviços que permitem competir na economia global, porque, na medida em que a produção se tornar fortemente mediada por dados, inteligência artificial, computação em nuvem, alguém terá de pagar por isso, certo? E não há nenhuma garantia de que o custo do acesso a essas tecnologias vai se manter baixo.
Voltamos ao debate clássico sobre dependência e desenvolvimento que vem acontecendo nesta região desde a década de 1960. Mas, agora, a dependência pode se tornar cada vez mais aguda. Antes, quando você tinha que construir uma fábrica de carros, podia escolher entre empresas de vários países, Peugeot, Fiat, Volkswagen, General Motors e outras. Agora, as opções são bem mais limitadas —Amazon, Microsoft e Google, todas dos EUA.
E se os EUA decidem que, por algum motivo, um país não é mais um aliado e passa a cobrar o dobro, triplo ou quádruplo do preço? Por isso fiquei muito encorajado quando reverteram a decisão tomada sob [Jair] Bolsonaro de fechar a fábrica de semicondutores Ceitec.

Quando se trata, por exemplo, de grandes modelos de linguagem, por que Sam Altman e a OpenAI fariam um trabalho melhor com IA generativa em português do que vocês? Se não houver um projeto que crie uma IA generativa de propriedade pública e que esteja no Brasil, tudo o que for de acesso aberto, criado com a ideia de beneficiar a humanidade, acabará beneficiando em grande parte a OpenAI.
Consigo imaginar um mundo em que haverá mais IA, mais computação em nuvem e mais 5G, mas o bem-estar econômico da maioria das pessoas será menor que antes.
O Brasil e muitos outros países são dependentes de importação de semicondutores, só montamos alguns chips. Como emergentes como o Brasil devem navegar a Guerra Fria tecnológica entre China e EUA e, talvez, obter autonomia e independência no desenvolvimento da própria tecnologia?
Sob Lula, o Brasil deixou claro seu compromisso com os Brics, ainda que não adote uma posição de adversário dos EUA. A Índia, também sem adotar uma posição adversária aos EUA como a China ou a Rússia, conseguiu construir uma economia digital doméstica robusta.
Não estão na vanguarda da produção de chips, mas estão à frente do Brasil em tecnologia doméstica e no aspecto regulatório. Eles fiscalizam muito mais o poder das grandes empresas de tecnologia americanas e chinesas. Há coisas que podem ser aprendidas. Mas, no final das contas, tudo se resume ao poder.
O Brasil continua sendo um mercado enorme e as empresas americanas ainda estão presentes nele e gostariam de se expandir. E é por isso que vemos elas fazendo lobby agora para aprovar uma regulação favorável.

Quando se trata de regular as plataformas, acho que o Brasil não deve ter receio de impor cada vez mais condições a elas. Transferência de tecnologia é ótimo, mas há mais coisas para se fazer, joint ventures, transferir a propriedade intelectual para o Brasil em vez de apenas alugá-la.
O Brasil precisa ser mais assertivo. E aproveitar o fato de ainda não estar totalmente com a China para pressionar Washington a cobrar suas empresas a serem um pouco mais propensas a compartilhar a propriedade intelectual.
Evgeny Morozov, 39
É um escritor e pesquisador com dupla cidadania (Belarus e Itália) e autor de “Big Tech – A ascensão dos dados e a morte da política”, da Ubu Editora. Foi professor visitante da Universidade Stanford e da Universidade Georgetown, e editor das revistas Foreign Policy e The New Republic. Tem doutorado em História da Ciência pela Universidade Harvard
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